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Diário de uma viajante

  • Yara Nico

Se aqui não fosse aqui, onde seria?

Updated: Mar 2, 2020


Eu passei a brincar muitas vezes disso, depois do dia em que a ideia dessa brincadeira apareceu completa na minha cabeça, de uma vez só, enquanto eu olhava um monte de telhados amontados.

Esse bordado fazia parte da exposição 'A Casa Bordada' no A CASA museu do objeto brasileiro. Tirei essa foto para guardar duas paixões: bordados coloridos e Manoel de Barros, autor do livro 'Meu quintal é maior que o mundo'.

Era final de tarde e eu tinha parado no alto de uma ladeira no bairro da Pompéia, em São Paulo. Ontem tinha sido um dia qualquer, hoje nada tinha acontecido e amanhã prometia ser ontem, só que com o nome diferente. Encostei entediada numa mureta. Eu era especialista em reconhecer tédio. Tinha tédios de várias colorações e pesos. Eu nunca gostei muito de rotina, então qualquer tédio leve e clarinho já era motivo para eu tentar inventar alguma novidade. Eu experimentava uma absoluta falta de capacidade de ter a sensação de estar fazendo nada ou, sendo mais honesta, um grande medo do tédio abrir rapidamente aquele buraco de vazio que eu odiava sentir. Então, qualquer pontinha de tédio era um sinal de alerta que me colocava em movimento. Eu ia estudar, lavar louça, passar roupa, ver um filme, abrir a geladeira, ligar para alguém, planejar algo gostoso para fazer no dia seguinte. Tudo para mudar meu entorno concretamente e escapar do tédio para outro lugar qualquer!

Mas, naquele final de tarde tedioso, eu parei na mureta e fiquei quieta. Olhei aquele monte de casinha lá embaixo. A imagem do caminho para casa era tão familiar que já tinha desbotado. Lá de cima eu até conseguia enxergar o reflexo da luz do sol dourado das seis da tarde sobre um monte de telhinhas marrons e vermelhas - os telhados tinham se vestido com paetês e lantejoulas para se despedir do sol. Mas eu não conseguia mais ver brilho naquela imagem. Era um dourado já gasto pelo uso dos olhos.


E eu não gostava de ver a realidade virar opaca e perder a temperatura, como um corpo que vai perdendo a vida.

Foi nesse instante que ouvi um pensamento: “se você estivesse vendo essa mesma cena, exatamente essas mesmas casinhas, com esses mesmos telhados, cada um deles com todas essas mesmas telhinhas, cada telhinha com a mesma cor que você está vendo agora, e tudo isso sob esse mesmo sol das seis... Se nada do que você está vendo nesse exato momento mudasse, mas essa imagem estivesse sendo vista por você, pela primeira vez, numa viagem, será que você conseguiria ver todo o brilho que agora não consegue mais? Bora experimentar? Então pensa: se aqui não fosse aqui, onde seria? Em que outro lugar do mundo essa mesma paisagem poderia existir, assim, desse mesmo jeito? Na hora, sem nunca ter ido para Lisboa, mas tendo já visto fotos e filmes, respondi sem hesitar: ‘ora pois, se aqui não fosse aqui, seria Lisboa’. E imediatamente, só de imaginar que eu estava vendo exatamente a mesma cena, mas que aquele lugar era Lisboa, todo o brilho, a vida e a beleza voltou a pulsar diante dos meus olhos. O tédio evaporou e eu desejei, como um viajante que encontra o mundo pela primeira vez, a eternidade daquele instante.


Foi realmente um momento de profunda epifania. Tinha acabado de aprender sozinha que a pergunta “se aqui não fosse aqui, onde seria?’, abria uma porta inédita em mim. E que era possível seguir por ela, sem sair do lugar. Era possível usar um olho para fora - para prestar bastante atenção nos detalhes da cena - e um olho para dentro – para buscar minhas referências visuais reais ou imaginadas – e percorrer o caminho até que as duas informações se encaixassem e eu chegasse no destino final: a resposta para a pergunta mágica. No caso, Lisboa! Descobri que se eu percorresse esse caminho, eu desembarcaria no mesmo lugar de origem e ele estaria totalmente novo. Imaginar que alí era Lisboa fazia Pompéia ser nova.


E só para eu ficar tranquila, deixa eu conferir se consegui ser clara quanto as regras da brincadeira: o truque não vem de imaginar, na cena vista, elementos visuais ausentes. Ao pensar ‘aqui seria Lisboa’ eu não me esforcei para tentar ver bondinhos, azulejos ou o Rio Tejo na cena que via na Pompéia. Não é uma brincadeira para mudar os elementos visuais por meio da imaginação. Não é uma indução consciente de um quase delírio. Não é brincar de ‘ver na ausência da coisa vista’. O esforço é de contemplar os detalhes de onde se está, para coletar o máximo de elementos visuais e sensoriais presentes e, ao mesmo tempo, usar a imaginação para tentar encaixar aquele fragmento da realidade dentro de um outro quadro maior. Você precisa sentir, com seu corpo inteiro, que sua resposta encaixou mesmo. Que, realmente, se não fosse alí, aquele lugar seria onde você acabou de responder. Aquela paisagem certamente poderia ser em Lisboa. Eu senti isso. E viver como verdade aquele encaixe fez aquele mesmo mundo nascer de novo. Talvez só naquele momento eu tenha entendido o poema que já era o meu favorito na época.



E o que vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

E eu sei dar por isso muito bem...

Sei ter o pasmo essencial

Que tem uma criança se, ao nascer

Reparasse que nascera deveras...

Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do Mundo... [Alberto Caeiro]


Criei naquele instante um truque mágico, uma brincadeira divina que repeti por muitas vezes. Aprendi a viajar sem sair do lugar. Aprendi a viajar não só para mudar o que está fora, mas também para reinventar o olhar sobre o já visto.

No começo, usei a varinha de condão ‘se aqui não fosse aqui, onde seria’? em momentos de apagamento do mundo. São Paulo já foi voltou a brilhar ao ser Roma, uma rua cinzenta e barulhenta voltou a me instigar curiosidade, ao ser México, e um canto da praia ficou de novo azul e verde, ao ser Tailândia.


Conforme fiquei mais craque com a brincadeira e confirmei que o truque funcionava de verdade para alterar minha percepção da realidade, comecei a ensinar essa brincadeira para alguns amigos que, amigos que são, brincavam comigo disso quando eu propunha. E passei a brincar disso com eles mesmo quando o mundo não estava opaco. A gente estava dançando na sala de casa e eu lançava ‘se aqui não fosse aqui, onde seria?’, daí cada um embarcava na sua viagem pessoal e contava onde tinha desembarcado. Minha sala já foi Uruguay, Halifax, Hungria ... e o mais divertido quando eu brincava em grupo, era ouvir as explicações de cada um e, a partir delas, passar a ver, de vários modos novos e diferentes a minha já bem conhecida, sala de casa.


Portanto, acho que foi muito antes da minha viagem sabática que eu comecei a viver viajando. Talvez tenha sido naquela tarde tediosa na Pompéia quando criei a brincadeira ‘se aqui não fosse aqui’.


Mas, não me mate, eu ainda não tenho certeza que foi mesmo nesse momento que nasceu minha vontade de viver viajando.



Pode uma mesma coisa nascer várias vezes numa mesma vida?


Ou pode uma coisa ir nascendo um pouquinho a cada dia?



Eu e minha vontade de viajar espichando juntas numa rua em que estava só de passagem, como sempre.

Porque eu não sei se teve um dia exato em que essa vontade nasceu.


Talvez ela tenha crescido comigo quando eu ainda era pequenininha.

Eu acho que nós duas fomos espichando juntas, como uma coisa só, antes de eu chegar no Brasil, com 5 anos.


Pois é, eu não nasci no Brasil. Sou filha de brasileiros. Minha nacionalidade é brasileira. Mas eu nasci fora e, viajei um pouco antes de conhecer o Brasil. Lembra que te contei aqui de uns sentimentos difíceis que eu conheci quando era criança e que tinham a ver com uma situação de viagem?


Acho que chegou a hora de te contar melhor sobre isso. Sobre o que aconteceu comigo e com meus pais. Sobre minha infância roubada. Sobre como eu cresci já viajando.



Acho que foi lá mesmo que viver e viajar nasceram como uma coisa só.


Como aqui já ficou muito comprido, vou virar a página e começar essa parte na próxima folha, novinha, como eu era quando tudo começou.

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